sexta-feira, 8 de julho de 2011

As Quatro Lendas do Vento

(Ouvindo os sons dos ventos, podemos ouvir as vozes dos antepassados e dos ainda não nascidos)
Dizem os antigos que os ventos
Não são mais do que os lamentos
De almas inquietas que morreram
E que se os soubermos ouvir
falam do findo e do provir
e dos que ainda não nasceram
(O vento é um espírito que testa a nossa força vital e nossos merecimentos)
Dizem ao velhos serenamente
que eles acariciam a gente
para testar o nosso vigor
Pois o espírito das ventanias
causando-nos respostas sombrias
pode em inércia virar temor
(Levantando o horizonte, derrubando homens e árvores, o vento mostra a equidade da vida)
e se o vento, em forte ventar
acabar por te derrubar
não vê nisso uma ignomínia
revela-te só o pó que és
mostrando estar sob os teus pés
a terra onde tudo volta um dia
(Ouve o vento com o coração, ele pode trazer notícias do teu amor)
que me traga o vento novas tuas
coisas de amor, não notícias cruas
para o meu amor se alimentar
e que ele em nova rotação
te leve os sons do meu coração
transformando em nada, este mar
(Henrique Moreira - 2001)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A Criatura

Quando os séculos ainda não tinham substância e o planeta Terra ainda se encontrava sem forma dentro do ovo primordial, uma decisão foi tomada:

- «Deixemos o Caos reinar. Observemos o decurso da História»

Então Deus disse: - «Faça-se luz»

Com esta ordem o ovo explodiu, espalhando a sua mensagem num espaço que ele próprio criava à medida que ia crescendo.

Eons passaram e as fantásticas temperaturas criadas pela explosão foram diminuindo e a matéria agregando-se em colapsos gravitacionais. Inimagináveis são mesmo as dimensões do que estou falando: primeiro criaram-se os clãs, cada clã constituído por várias famílias, cada família por várias galáxias e em cada galáxia surgiram vários berçários de Estrelas e num destes berçários nasceu o nosso SOL e com ele o planeta Terra.

E então o planeta nos inventou. E nós inventámos uma perplexidade. E esta perplexidade criou o medo. E o medo inventou os deuses. E os deuses inventaram-nos uma inteligência racional, que logo os negou inventando a pergunta : “QUEM SOU?”

Ao tentarmos responder a esta questão, nos afundamos nos tortuosos caminhos da ignorância. Mas como que por magia, ao procurar resposta a esta questão, respostas a outras vão surgindo e com elas nasce um emblemático sentimento de que somos donos do Universo.

Deus, ao observar a Sua obra, viu num pequeno canto de uma pequena galáxia, algo que O deve ter “assustado”: uma frágil criatura com a capacidade de inventar Deus.

Aí os anjos vieram. Vieram para nos ajudar a retornar ao caminho do Caos, onde o desequilibro de forças e a impredictibilidade dos resultados, geram evolução.

Mas aquela inteligência racional inventada, questiona O próprio Deus: «Se tudo o que existe necessita de um lugar onde existir, em que lugar estaria Deus quando ordenou a criação de tudo?».

Esta questão nos leva à compreensão de que somos animais relativos, presos num sistema fechado e limitados pelo sensorial. E esta compreensão nos leva à revolta e essa revolta nos leva a querer sair das fronteiras designadas pelo Caos e a querer pular a cerca para o quintal do Divino Vizinho, lugar onde poderemos também ser divindades.

Assim, o Homem responde à questão do “QUEM SOU?”, assumindo uma posição de amado por Deus, convicto que um dia navegará pelo cosmos, e que encontrará a tal fronteira, que depois de ultrapassada, lhe dará a oportunidade de encarar o seu Criador e em animada cavaqueira Lhe perguntar “PORQUÊ?”

(Henrique Moreira - 1975)

domingo, 3 de julho de 2011

Teresa

Na foto a actriz Teresa Wright (1918-2005), vencedora do Óscar para a Melhor Actriz em Papel Secundário no filme Mrs Miniver (1942) de William Wyler







“Cuidado com aquele que tem o hábito de ler os seus versos em público,
seguramente é pessoa com outros defeitos”.
(R.A.Heilein)

Eu e a Teresa costumávamos conversar muito. Como só nos encontrávamos nas férias de Verão, usufruíamos com um prazer sempre renovado aquelas noites quentes. Ao mesmo tempo, relembrávamos tudo quanto se tinha passado connosco no resto do ano. Falávamos dos novos amigos feitos e das esperanças despontadas com essas novas amizades; do que de bom e de mau nos tinha acontecido, dos novos planos para o futuro próximo, etc.
Trocávamos impressões e ouvíamos sedentos os comentários um do outro.
Era uma amizade perfeita, não comungávamos de todas as opiniões, mas respeitávamos o que o outro pensava sem ajuizar valores.
Conversávamos abertamente sobre todos os temas: Ela falou-me do trauma da sua primeira experiência sexual e eu do meu primeiro fracasso; contava-me sobre os seus desamores e eu dos meus desesencontros.
Conforme a nossa educação e cultura foram sendo aprimoradas, iniciámos discussões de âmbito científico e filosófico, e de cada vez nos sentíamos mais próximos um do outro.
No nosso terceiro Verão juntos, e depois de termos verificado como nos dávamos bem, falámos na hipótese de adicionar o sexo à nossa amizade. Chegámos à conclusão que não, ambos gostávamos muito dos prazeres da carne, mas concluímos que se isso entrasse naquela relação, iríamos perder tudo o resto que nos unia - anos depois veríamos que essa tinha sido uma das mais duras e acertadas medidas que tínhamos tomado, mas isso é uma outra história.
Parecia que uma amizade assim não podia ter segredos, mas enganei-me. Teresa tinha um segredo que só descobri por um acaso e após muitos anos de relacionamento: ela escrevia.
Quando a confrontei com essa descoberta ela não a desmentiu, mas surpreendeu-me a justificação para que nunca me tivesse falado disso:
«Escrever é para mim um acto muito íntimo. Uso-o para registrar os meus conhecimentos, sentimentos e emoções do momento. Sejam estes registos saudáveis ou completamente podres, eu me sirvo deles para testar a minha evolução como ser humano. Por isso mesmo, é coisa que faço sempre em privado e tendo depois, sempre o cuidado de lavar muito bem as mãos».
Perante as minhas reclamações, concluiu:
«Um poema de amor, por muito bem declamado que seja, tem sempre menos força que um insulto bem dirigido. Ler ou dar a ler o que escrevo, revelaria a maneira como me vejo, e delataria as sombras que vejo em mim. Como tal, deixo essa apreciação para quando eu não puder fazer mais nada em relação a isso».
Hoje, sou casado com ela. Temos três filhos e dois netos; passámos por duas hipotecas e uma guerra; assistimos ao pousar do homem na Lua e à queda do bloco Soviético; à Sexta-feira ela ainda coloca o seu vestido de beijar para nos amarmos como quando éramos jovens. Mas apesar de tudo isto, ainda não consegui ler uma única linha escrita por ela.

(Henrique Moreira - 2001)