Como quase todo o leitor, tenho em casa três tipos de livros: os lidos e relidos; os ainda por ler e os que nunca lerei. Peguei num dos do segundo grupo. Não o escolhi bem ao acaso, limitei-me a pegar o menos volumoso, pois naquela noite sentia-me distante demais para entrar num leitura longa, coisa que sempre exige de mim muita atenção.
Olhei a capa e li “O axioma”. Satisfeito com o título sugestivo neste encontro casual, dirigi-me à poltrona das leituras para iniciar a função. Instalei-me confortavelmente, sorvi um pequeno gole de Chivas 21 que sempre reservo para estas sessões e abri o livro.
“Era um noite de tempestade...“
Foi o suficiente. Bastaram cinco palavras para que a minha viagem começasse.
«E lá estava eu num bosque, no meio de uma chuva torrencial, iluminado por relâmpagos estrondosos.
Para fugir à lama que descia a encosta não muito íngreme, eu tentava manter-me num pequeno trilho pisado por muitos caminhantes antes de mim. Não era uma tarefa fácil devido à escuridão, mas mesmo assim não me estava saindo muito mal.
Foi então que encontrei aquela clareira. Não era muito grande, mas a falta de árvores ali permitia que a luz vinda dos raios demorasse mais a extinguir-se. E foi então que o vi.
Primeiro dois pontos luminosos impossíveis de identificar, mas o relâmpago seguinte logo revelou a silhueta de um lobo.
Todas as histórias de lobos ouvidas na infância vieram-me à memória e isso foi o pior que podia ter-me acontecido. Medos antigos e irracionais tomam-me a mente e começo a tremer violentamente. Novo relâmpago e vejo que afinal o lobo não está só. Vejo dois. Não, são quatro... uma alcateia, feras prontas a devorarem-me.
O terror faz-me cair para trás e abro desesperadamente os olhos... »
Ainda estou na minha sala, sentado na minha poltrona, vejo “O axioma” caído aos meus pés e o copo de Chivas em cima da mesinha. Faço várias inspirações violentas para retomar o ritmo cardíaco e sossegar do susto. Ainda a tremer bastante, consigo beber um gole de whisky, que ajudou bastante na recuperação.
Mais calmo, recosto-me e fico pensando no que aconteceu. Fecho os olhos e...
«Encontro-me novamente naquela clareira. A tempestade está mais forte do que nunca e as minhas preocupações aumentam.
Olho para o lado e vejo a minha companheira tentando proteger as nossas duas crias da água que a pequena gruta onde estávamos, não abrigava completamente.
Mas a minha preocupação não era agora a água, mas sim o homem que estava do outro lado da clareira. A ancestralidade da minha herança identificava-o como um matador de lobos, um predador implacável que devia sempre ser evitado.
Mas agora era diferente, eu tinha uma família e não ia deixá-los à mercê daquela fera.
Lentamente levanto-me e dirijo-me em sua direcção. Talvez tenha feito isso energicamente demais, pois derrubo algo que distrai a minha atenção, ao tentar descobrir o que é...»
Vejo que ainda estou na minha sala. Mas estou de quatro gatinhando em direcção à porta.
Raios! Derrubei o candeeiro de pé alto. Mas... o que estou fazendo?
Lembrei-me do lobo e senti-me embaraçado... a minha imaginação estava me levando para esferas muito estranhas.
Ainda bem que estava sozinho em casa e ninguém assistiu.
Recordando esta peripécia, fico pensando: de que lado da clareira estava a irracionalidade?
(Henrique Moreira - 1985)
Sem comentários:
Enviar um comentário