segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

02 de Dezembro de 2011

Contrariamente ao que costumo fazer e tendo em conta que só eu leio este blog, vou iniciar aqui uma série de crónicas relatando algumas das minhas experiências no mundo teatral.

E para começar, como não podia deixar de ser, vou falar sobre a minha primeira, e até agora única, experiência como actor.

Devo dizer que ser actor, isto é, entrar num palco ou praticável e representar um personagem, nunca foi algo que estivesse na minha lista de coisas a fazer.
Amo o teatro, sem dúvida, mas sempre fui e sempre me vi como um elemento de “backstage” ou de “régie”. Pensar-me sob os olhares de uma audiência é algo que me faz brotar espontaneamente borboletas no estômago.
Confesso que aceitei este desafio, porque inicialmente estaria só como figurante e não havendo trabalho técnico a fazer, não queria perder mais uma oportunidade de fazer o que gosto. Mas logo a seguir colocaram-me um outro repto: criar um texto para uma personagem. Ah! Ia-me esquecendo de referir que esta apresentação foi dada a crianças carentes, numa festa organizada para angariação de fundos para as mesmas. E o tema, como seria inevitável, foi o Natal.
O texto que criei para a mendiga saiu tão bem, que logo a seguir pediram-me para escrever o resto do texto da apresentação. Não foi nada demais, mas foi também a minha primeira experiência como autor.
A coisa começou a complicar-se quando a actriz, para a qual escrevi o monólogo da mendiga, acabou por desistir e me sugeriram para ser eu a dizer esse texto. Inconscientemente aceitei.
Quando a hora da apresentação se aproximou e com somente dois ensaios, as borboletas pularam do estômago para todo o meu corpo. Mas havia duas coisas que me sossegavam: em primeiro lugar estar inserido num grupo espectacular, com actores e actrizes magníficos e que ao mesmo tempo eram (e continuam sendo) pessoas deliciosas; e em segundo, estar dizendo um texto meu (foi isto o que me safou).
Quando chegou a minha hora, as borboletas pareciam morcegos e o medo de esquecer o texto foi substituído pelo receio de ter esquecido como andar.
Como até aquele momento todo o espectáculo tinha corrido tão bem e como eu não queria de maneira alguma manchar a representação já feita, uma força surgiu não sei de onde e dei os primeiros passos… olhei os trapos que trazia vestidos… sorri tristemente e disse:

- Sou um mendigo sim! Ah! Mas já fui pastor.
(…)

Bastaram estas palavras para que os morcegos voltassem a serem borboletas e para que as borboletas voltassem a ser amor.

(Henrique Moreira – 2011)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pergunta-se.

Quem lida com crianças já deve ter-se confrontado com algumas situações de perguntas desenfreadas e completamente absurdas, do tipo: Porque é que o fogo queima? Porque faz barulho o relâmpago; De onde vêm os bebés? O Pai Natal existe? Etc. etc. etc.

Mas se pensarmos bem, chamamos este tipo de perguntas absurdas, porque na maior parte das vezes não sabemos a resposta, ou não temos à-vontade suficiente para darmos a resposta que conhecemos. Ficamos tão inseguros com este tipo de interrogatório, que o chamamos de absurdo e rezamos a todos os deuses ( os nossos e os dos outros ) para que a criança se distraia e nos liberte daquele sufoco.

Mas eu afirmo que, essas perguntas são as que verdadeiramente importam. Isto é tão verdade que, com o crescimento as crianças deixam de as fazer, transformando-as em outras cujas respostas são muito mais acessíveis, do tipo: Posso dormir fora? Empresta-me o carro? Posso faltar à escola? Etc.

Mas, reafirmo o que disse anteriormente, são as perguntas iniciais as verdadeiramente importantes e devemos sempre estar preparados para responder a elas, mesmo sabendo que um dias eles deixarão de as fazer.

No entanto, há crianças que durante toda a sua vida manterão este tipo de questões.
Acabarão por se tornar poetas, físicos ou filósofos.
Deus as abençoe.

(Henrique Moreira - 2011)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Estranha sensação

Hoje acordei sentindo uma imensa saudade de ti.
Procuro em mim as tuas imagens, mas és como um rio que corre pela minha vida:

a água que passou, não é mais a que passa. O mesmo rio, mas não a mesma água.
E a cada momento de saudade, "esburaca-se" mais o meu peito.
Estranha esta sensação: sedento nas margens de um rio.

Hoje acordei sentindo uma enorme saudade tua.
É como se a tua invisibilidade me abraçasse, mas o acalanto longínquo, distante.

Como estar esfomeado de vida e só sentir os aromas da ambrósia.
Aumenta a sede, a fome, o apetite e a saudade.
Hoje fui acordado pela Saudade

Acordou-me a Saudade com palavras estranhas:
"Só os que amam sentem a minha presença."
Acordou-me a Saudade com palavras singulares:
"Não me guardes no peito, solta-me em palavras."

Senti a presença, soltei as palavras...
Mas a Saudade tinha enlouquecido de saudades.
Não as podendo "matar", definho com elas...

(Henrique Moreira - 2011)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Tempestad(e)

O vento do Norte sopra forte e impiedoso e ele sente o seu corpo balançar ao sabor dos seus repentinos excessos. Semicerra os olhos e tenta vislumbrar de onde vem tanta violência. Vê o negro recorte de uma frente escura que se aproxima com pressa em deixar assinatura na sua fragilidade.
O seu primeiro impulso é fugir, procurar abrigo, mas algo o segura. Vozes dizem-lhe que nunca conseguirá testar a solidez do seu chão se caminhar somente sob as cálidas carícias do Sol.
Fica e testa... e testa-se.

Tudo acontece com uma estranha rapidez e sobrevive.
Continua ele, mas ao mesmo tempo não é mais quem era.

É por isso que ele ama tempestades. Elas mudam-no a cada rajada de vento.

(Henrique Moreira - 2010)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Lobo

Como quase todo o leitor, tenho em casa três tipos de livros: os lidos e relidos; os ainda por ler e os que nunca lerei. Peguei num dos do segundo grupo. Não o escolhi bem ao acaso, limitei-me a pegar o menos volumoso, pois naquela noite sentia-me distante demais para entrar num leitura longa, coisa que sempre exige de mim muita atenção.

Olhei a capa e li “O axioma”. Satisfeito com o título sugestivo neste encontro casual, dirigi-me à poltrona das leituras para iniciar a função. Instalei-me confortavelmente, sorvi um pequeno gole de Chivas 21 que sempre reservo para estas sessões e abri o livro.

“Era um noite de tempestade...“

Foi o suficiente. Bastaram cinco palavras para que a minha viagem começasse.
«E lá estava eu num bosque, no meio de uma chuva torrencial, iluminado por relâmpagos estrondosos.

Para fugir à lama que descia a encosta não muito íngreme, eu tentava manter-me num pequeno trilho pisado por muitos caminhantes antes de mim. Não era uma tarefa fácil devido à escuridão, mas mesmo assim não me estava saindo muito mal.

Foi então que encontrei aquela clareira. Não era muito grande, mas a falta de árvores ali permitia que a luz vinda dos raios demorasse mais a extinguir-se. E foi então que o vi.

Primeiro dois pontos luminosos impossíveis de identificar, mas o relâmpago seguinte logo revelou a silhueta de um lobo.
Todas as histórias de lobos ouvidas na infância vieram-me à memória e isso foi o pior que podia ter-me acontecido. Medos antigos e irracionais tomam-me a mente e começo a tremer violentamente. Novo relâmpago e vejo que afinal o lobo não está só. Vejo dois. Não, são quatro... uma alcateia, feras prontas a devorarem-me.
O terror faz-me cair para trás e abro desesperadamente os olhos... »

Ainda estou na minha sala, sentado na minha poltrona, vejo “O axioma” caído aos meus pés e o copo de Chivas em cima da mesinha. Faço várias inspirações violentas para retomar o ritmo cardíaco e sossegar do susto. Ainda a tremer bastante, consigo beber um gole de whisky, que ajudou bastante na recuperação.

Mais calmo, recosto-me e fico pensando no que aconteceu. Fecho os olhos e...

«Encontro-me novamente naquela clareira. A tempestade está mais forte do que nunca e as minhas preocupações aumentam.
Olho para o lado e vejo a minha companheira tentando proteger as nossas duas crias da água que a pequena gruta onde estávamos, não abrigava completamente.
Mas a minha preocupação não era agora a água, mas sim o homem que estava do outro lado da clareira. A ancestralidade da minha herança identificava-o como um matador de lobos, um predador implacável que devia sempre ser evitado.
Mas agora era diferente, eu tinha uma família e não ia deixá-los à mercê daquela fera.
Lentamente levanto-me e dirijo-me em sua direcção. Talvez tenha feito isso energicamente demais, pois derrubo algo que distrai a minha atenção, ao tentar descobrir o que é...»

Vejo que ainda estou na minha sala. Mas estou de quatro gatinhando em direcção à porta.

Raios! Derrubei o candeeiro de pé alto. Mas... o que estou fazendo?
Lembrei-me do lobo e senti-me embaraçado... a minha imaginação estava me levando para esferas muito estranhas.
Ainda bem que estava sozinho em casa e ninguém assistiu.

Recordando esta peripécia, fico pensando: de que lado da clareira estava a irracionalidade?

(Henrique Moreira - 1985)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

As Quatro Lendas do Vento

(Ouvindo os sons dos ventos, podemos ouvir as vozes dos antepassados e dos ainda não nascidos)
Dizem os antigos que os ventos
Não são mais do que os lamentos
De almas inquietas que morreram
E que se os soubermos ouvir
falam do findo e do provir
e dos que ainda não nasceram
(O vento é um espírito que testa a nossa força vital e nossos merecimentos)
Dizem ao velhos serenamente
que eles acariciam a gente
para testar o nosso vigor
Pois o espírito das ventanias
causando-nos respostas sombrias
pode em inércia virar temor
(Levantando o horizonte, derrubando homens e árvores, o vento mostra a equidade da vida)
e se o vento, em forte ventar
acabar por te derrubar
não vê nisso uma ignomínia
revela-te só o pó que és
mostrando estar sob os teus pés
a terra onde tudo volta um dia
(Ouve o vento com o coração, ele pode trazer notícias do teu amor)
que me traga o vento novas tuas
coisas de amor, não notícias cruas
para o meu amor se alimentar
e que ele em nova rotação
te leve os sons do meu coração
transformando em nada, este mar
(Henrique Moreira - 2001)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A Criatura

Quando os séculos ainda não tinham substância e o planeta Terra ainda se encontrava sem forma dentro do ovo primordial, uma decisão foi tomada:

- «Deixemos o Caos reinar. Observemos o decurso da História»

Então Deus disse: - «Faça-se luz»

Com esta ordem o ovo explodiu, espalhando a sua mensagem num espaço que ele próprio criava à medida que ia crescendo.

Eons passaram e as fantásticas temperaturas criadas pela explosão foram diminuindo e a matéria agregando-se em colapsos gravitacionais. Inimagináveis são mesmo as dimensões do que estou falando: primeiro criaram-se os clãs, cada clã constituído por várias famílias, cada família por várias galáxias e em cada galáxia surgiram vários berçários de Estrelas e num destes berçários nasceu o nosso SOL e com ele o planeta Terra.

E então o planeta nos inventou. E nós inventámos uma perplexidade. E esta perplexidade criou o medo. E o medo inventou os deuses. E os deuses inventaram-nos uma inteligência racional, que logo os negou inventando a pergunta : “QUEM SOU?”

Ao tentarmos responder a esta questão, nos afundamos nos tortuosos caminhos da ignorância. Mas como que por magia, ao procurar resposta a esta questão, respostas a outras vão surgindo e com elas nasce um emblemático sentimento de que somos donos do Universo.

Deus, ao observar a Sua obra, viu num pequeno canto de uma pequena galáxia, algo que O deve ter “assustado”: uma frágil criatura com a capacidade de inventar Deus.

Aí os anjos vieram. Vieram para nos ajudar a retornar ao caminho do Caos, onde o desequilibro de forças e a impredictibilidade dos resultados, geram evolução.

Mas aquela inteligência racional inventada, questiona O próprio Deus: «Se tudo o que existe necessita de um lugar onde existir, em que lugar estaria Deus quando ordenou a criação de tudo?».

Esta questão nos leva à compreensão de que somos animais relativos, presos num sistema fechado e limitados pelo sensorial. E esta compreensão nos leva à revolta e essa revolta nos leva a querer sair das fronteiras designadas pelo Caos e a querer pular a cerca para o quintal do Divino Vizinho, lugar onde poderemos também ser divindades.

Assim, o Homem responde à questão do “QUEM SOU?”, assumindo uma posição de amado por Deus, convicto que um dia navegará pelo cosmos, e que encontrará a tal fronteira, que depois de ultrapassada, lhe dará a oportunidade de encarar o seu Criador e em animada cavaqueira Lhe perguntar “PORQUÊ?”

(Henrique Moreira - 1975)

domingo, 3 de julho de 2011

Teresa

Na foto a actriz Teresa Wright (1918-2005), vencedora do Óscar para a Melhor Actriz em Papel Secundário no filme Mrs Miniver (1942) de William Wyler







“Cuidado com aquele que tem o hábito de ler os seus versos em público,
seguramente é pessoa com outros defeitos”.
(R.A.Heilein)

Eu e a Teresa costumávamos conversar muito. Como só nos encontrávamos nas férias de Verão, usufruíamos com um prazer sempre renovado aquelas noites quentes. Ao mesmo tempo, relembrávamos tudo quanto se tinha passado connosco no resto do ano. Falávamos dos novos amigos feitos e das esperanças despontadas com essas novas amizades; do que de bom e de mau nos tinha acontecido, dos novos planos para o futuro próximo, etc.
Trocávamos impressões e ouvíamos sedentos os comentários um do outro.
Era uma amizade perfeita, não comungávamos de todas as opiniões, mas respeitávamos o que o outro pensava sem ajuizar valores.
Conversávamos abertamente sobre todos os temas: Ela falou-me do trauma da sua primeira experiência sexual e eu do meu primeiro fracasso; contava-me sobre os seus desamores e eu dos meus desesencontros.
Conforme a nossa educação e cultura foram sendo aprimoradas, iniciámos discussões de âmbito científico e filosófico, e de cada vez nos sentíamos mais próximos um do outro.
No nosso terceiro Verão juntos, e depois de termos verificado como nos dávamos bem, falámos na hipótese de adicionar o sexo à nossa amizade. Chegámos à conclusão que não, ambos gostávamos muito dos prazeres da carne, mas concluímos que se isso entrasse naquela relação, iríamos perder tudo o resto que nos unia - anos depois veríamos que essa tinha sido uma das mais duras e acertadas medidas que tínhamos tomado, mas isso é uma outra história.
Parecia que uma amizade assim não podia ter segredos, mas enganei-me. Teresa tinha um segredo que só descobri por um acaso e após muitos anos de relacionamento: ela escrevia.
Quando a confrontei com essa descoberta ela não a desmentiu, mas surpreendeu-me a justificação para que nunca me tivesse falado disso:
«Escrever é para mim um acto muito íntimo. Uso-o para registrar os meus conhecimentos, sentimentos e emoções do momento. Sejam estes registos saudáveis ou completamente podres, eu me sirvo deles para testar a minha evolução como ser humano. Por isso mesmo, é coisa que faço sempre em privado e tendo depois, sempre o cuidado de lavar muito bem as mãos».
Perante as minhas reclamações, concluiu:
«Um poema de amor, por muito bem declamado que seja, tem sempre menos força que um insulto bem dirigido. Ler ou dar a ler o que escrevo, revelaria a maneira como me vejo, e delataria as sombras que vejo em mim. Como tal, deixo essa apreciação para quando eu não puder fazer mais nada em relação a isso».
Hoje, sou casado com ela. Temos três filhos e dois netos; passámos por duas hipotecas e uma guerra; assistimos ao pousar do homem na Lua e à queda do bloco Soviético; à Sexta-feira ela ainda coloca o seu vestido de beijar para nos amarmos como quando éramos jovens. Mas apesar de tudo isto, ainda não consegui ler uma única linha escrita por ela.

(Henrique Moreira - 2001)